terça-feira, 4 de maio de 2010

Conto I: O Retrovisor

Depois daquele fim de semana inesperado, estava na hora de voltar a Lisboa, e com ela à realidade do dia a dia. Ele iria a conduzir. Ela sentou-se propositadamente no lado direito do banco de trás, gostava de sentir a possibilidade dos olhares de retrovisor.
No carro vinham também o irmão, à frente, e a prima dele, ao lado dela no banco de trás.
Ninguém se arriscou a falar, e com o silêncio e o bom tempo que se fazia sentir, alguns deixaram-se adormecer.
Ficou ele e ela.
Ninguém falou.
Ela estava sentada de uma forma enrolada sobre si, diria até desleixada, ou então apenas descontraída.Sentava-se assim sempre que se sentia, ou procurava sentir, confortável consigo.
Naquele dia estava apenas bem, envolvida em si e nos seus pensamentos, como tantas vezes, misturada com o vento que entrava pela janela aberta do carro em movimento que lhe refrescava o rosto e baralhava o cabelo. Gostava de sentir aquele vento entorpecido por um sol que lhe cegava os olhos que fechava por instantes, pequenos instantes.
Não disse nada, nem se preocupou em dizer. Qualquer palavra que lhe saísse seria apenas uma tentativa de cortar o silêncio, que na verdade não a incomodava, pelo contrário transmitia-lhe paz. Ficou, então, concentrada no silêncio da musica que ele ia escolhendo. De vez em quando sorria para si, estava a gostar do seu jogo mental em que interpretava as mensagens das músicas como vindas dele para ela. A conversa que o silêncio ia sussurrando.
Depois olhava para ele, tinha um rosto como nunca antes vira nenhum, se pudesse ficaria horas a contemplá-lo, pensava.
Mudava de posição quando se dava conta de si estagnada nas linhas da sua face, não queria ser demasiado óbvia. Mas era inevitável olhá-lo, afinal também não tinha oportunidade de o fazer muitas vezes...
Fez um esforço para se dispersar e baixou a cabeça que pousou sobre os joelhos das suas pernas dobradas. Ficou assim uns segundos, e quando se achou preparada ergueu a cabeça, mas ainda assim não resistiu em lançar um último olhar ao retrovisor, onde inesperada e surpreendentemente viu os olhos dele a espreitarem para si, pensa ela que na preocupação de ver se também ela estaria a dormir. Ele rapidamente direccionou o olhar para a estrada que se estendia à sua frente e colocou uns óculos de sol.
Ela gelou com aquele olhar, não sabia se haveria de ficar feliz ou confusa. Ficou confusamente feliz mas a sua expressão facial a partir de então tornou-se estranha e um pouco indecifrável.
Ainda o olhou de relance algumas vezes até Lisboa, mas não tinha agora como saber em que direcção apontavam os seus olhos. O que lhe percorria os pensamentos não tinha como saber...Ficou, então, a perguntar-se se estaria ele a olhá-la por de baixo daqueles óculos ou se a olharia como ela o tinha vindo a olhar ao longo do caminho. Queria que o seu rosto lhe parecesse tão perfeito como o dele lhe parecia a ela...Mas não tinha como saber, o silêncio não lho disse!
Voltou a sentir o vento que ainda teimava em lhe baralhar o cabelo, mas deixou-se ficar...
Pensava como aquele olhar tão óbvio da parte dele poderia ser o inicio de uma vida, de uma história dele e dela, apenas dele e dela. Ou de como aquele olhar poderia ser o inicio de um desassossego que a atormentaria pelas certezas que o silêncio nunca lhe revelaria...
Enfim, tudo na vida é um quase...um quase tudo!
Chegaram a Lisboa. Ele deixou-a em casa, naquela avenida iluminada pelo sol de fim de tarde e seguiu...seguiu para a realidade do seu dia a dia.

6 comentários:

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  3. O olhar pelo retrovisor! Aquele pedaço de olhar que nunca conseguimos decifrar... Inquietude... Esperança...
    Escondemo-nos atrás de tantas máscaras invisíveis e como se essas ainda não bastassem ainda utilizamos mais meios/métodos de modo a salvaguardar aquilo que nos vai na alma! O olhar indirecto pelo retrovisor, a escuridão proporcionada pelos óculos de sol, o desviar o olhar aquele segundo antes da pessoa olhar para nós!!! Parece mesmo que o que mais queremos ser é o que não somos de todo... Pena!

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  4. Gostei, mas o que verdadeiramente penso...TU SABES

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  5. Tinha saudades de te ler! =P

    Tenho saudades tuas!

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