quinta-feira, 29 de abril de 2010

Uma pequena história...

" O seu corpo pedia-lhe mais descanso, necessitava de uma droga para se manter acordado, assim sendo, decidiu ir ao café. Desceu. Atravessou a rua. Entrou.
..."Que rapariga maravilhosa ali naquele canto, meu Deus que rapariga, tão sensual com aquela camisola bordeaux, aquela pose de artista sentada a ler um livro, ainda por cima tem bom gosto, como era bom se ela viesse até aqui.
Je sais aujourd'hui saluer la beauté.
Ela diria que adorava essa parte e que tal ir jantar a casa dela um dia e depois casar, eu responderia que tudo bem com o jantar e com o casamento logo se veria e ela concordaria. Como era bom se ela viesse até aqui. Aposto que tem o andar mais bonito com aquelas pernas magras. se eu fosse normal ia até à mesa dela, pousava a minha bica ao lado do cappucino dela e sentava-me.
Porque é que eu não sou normal, não tenho coragem de lá ir sentar-me? Talvez ela gostasse, talvez a sua primeira reacção fosse até dar-me um beijo de boas-vindas. Não custava nada tentar. Ou, então, o mais provável seria ignorar-me com um leve sorriso e fazer-me chorar. Por isso, mais vale ficar aqui na minha mesa a observá-la à distância sem ela saber, a deliciar-me com o seu ar concentrado nas belas palavras do livro que lê. Bastava levantar-me e ir até lá. Melhor seria se ela viesse aqui, poderia acariciar, primeiro com os olhos, depois com as mãos, aquele cabelo com alguns caracóis. Como era bom se ela viesse até aqui, não acredito!, levantou-se, está a vir para cá, oh não, lançou-me um sorriso de desprezo, afinal dirigia-se para a caixa, oh não, meu Deus, não a deixes sair, não a deixes ir embora, já pagou...que desespero, a minha ultima oportunidade. Parece que estou colado à cadeira, não me consigo levantar e vou deixá-la fugir...A rainha dos anjos a escapar-me por entre as mãos. Que andar sublime, meu Deus.
Adeus, amor..."


Ela saiu do café, guardou o livro. Faltavam 15min para a consulta. Chegou lá atrasada. Sentou-se e começou a falar.
- No outro dia lembrei-me da nossa conversa sobre a felicidade. Descobri que o problema talvez esteja em mim, talvez eu seja exigente demais comigo propria e para com a vida. Eu, no fundo, nem sou daquelas que se encontra na situação pior, há por ai pessoas na multidão que fazem um esforço enorme para viver um pouco todos os dias. Levantam-se, demoram 3h num autocarro para chegar a um trabalho de merda, almoçam um pacote de bolachas, voltam para o trabalho, aguentam o marido e a amante, chegam a casa, dão de comer ao filho, mudam as fraldas, sujam as mãos no rabo do miúdo, limpam as fezes que o cão fez em casa, fazem o jantar para o marido, enfiam-se na cozinha, lavam a loiça, deitam o filho, limpam a casa, passam a ferro e vão-se deitar. Que merda de vida é essa? Não falo apenas de coisas materiais: que tipo de amor é que essas pessoas recebem e que amor é que dão de volta? Que ambições é que essas pessoas têm na vida? Talvez chegarem a Domingo vivas e a tempo de irem ao Colombo ver montras inacessíveis, sonhando em ter tido um vestido de noiva decente. É dessas pessoas que tenho pena. Afinal, porque é que eu não consigo ser feliz?
-Hoje no café, por exemplo, vi um rapaz lindíssimo a beber uma bica. Fui atraída de imediato por qualquer coisa nele. Ele nem deve ter reparado em mim, uma rapariga vulgar com uma camisola bordeaux a beber um cappucino e a ler um livro, ou melhor, a finjir que lia um livro, pois a partir do momento em que ele entrou não me consegui concentrar mais e passei o tempo todo a olhar para ele discretamente. Ele apenas me olhou uma ou duas vezes de relance. Imaginei histórias várias para o momento do nosso encontro: eu devia ter tido coragem e ter ido lá, lia-lhe um poema, cantava-lhe uma canção e convidava-o para ir almoçar; ou então, ele poderia ter-se levantado e vindo até à minha mesa meter conversa, mas claro, quem é que quereria meter conversa com uma rapariga como eu? Estive até à ultima a roer-me por dentro para ter coragem e ir lá falar com ele. Como se vê, não fui. Acabei por sair, ainda lhe dei um ultimo sorriso de desespero que não resultou em nada. Fiz um esforço e não olhei para trás. Como era bom se ele tivesse ido lá...mas não foi...
É-me cada vez mais difícil viver nesta realidade; em vez disso, invento histórias, imagino situações e vou vivendo lentamente acompanhada por decepções constantes. Nenhuma das minhas histórias se realizou até hoje, parece que estou definitivamente condenada a viver no mundo dos sonhos de maneira a conseguir sobreviver.


Ela olhou para o relógio, levantou-se. Saiu. Passou por casa, fez uma mala e apanhou um comboio em direcção ao sul.


Ele voltou para casa a pensar no que havia de fazer com a sua vida. Fez uma mala e apanhou uma camioneta em direcção ao norte."

João Rosas in Deus Morreu e Eu Não Fui ao Funeral


(Dá que pensar não?!)

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