segunda-feira, 24 de maio de 2010

Conto II: Solos de Dança

Eram 4h da manhã. Ela acabara de chegar a casa, sentia-se indisposta por isso foi até à casa de banho e esforçou-se por vomitar mas nada se alterou, percebeu que essa má disposição que a incomodava não era algo que pudesse mudar com um simples vómito, revelava algo mais intrínseco...
Foi até ao quarto e abriu a janela na tentativa de sentir a leve brisa da noite, mas nem ai encontrou conforto. Enrolou um cigarro e ficou ali a observar o quadrado de vidas que pelas janelas aos poucos se soltavam. Àquela hora quase não existia realidade que os seus olhos pudessem observar portanto focou-se naquela estranha luz incessante que sempre vermelha piscava. Nunca chegara a saber que luz era aquela. Como era sinistra, pensava.
Compenetrada em toda uma envolvencia deu por si a pensar naquela tarde...

(...)

...em que uma cigana quase forçadamente lhe leu a mão e falou acerca de um moreno de olhos grandes.
Nunca gostara dessas coisas, não encontrava necessidade alguma na previsão do que quer que seja, ainda para mais sempre achou que era exactamente o facto de nos dizerem que determinada coisa irá acontecer que nos leva até ela. Todos temos vários futuros alternativos e um simples virar à esquerda em vez da direita pode determinar o dia e com ele uma vida e um desses futuros.
lembrava-se que depois desse dia e depois de tanto pensar no que lhe havia sido dito ainda teve vontade de lá voltar e perguntar se esse tal moreno de olhos grandes era ele. Esitou durante um tempo mas certo dia fartou-se e apanhou um autocarro...Estava nervosa, não tinha a certeza de querer de facto saber, receava o que lhe poderia ser dito e o impacto que isso poderia ter sobre si.Respirou fundo e enquanto isso ficou a ouvir a conversa das duas mulheres já de idade avançada, sentadas no banco de trás que até então apenas se tinham queixado e falado sobre doenças mas que agora falavam de um certo alguém seu conhecido, escutou.
-Ah está junto com uma mulher que tem idade para ser filha dele!
-Pois, vive com a juventude ao lado não envelhece!
E voltaram a falar de doenças.
Chegou. Saiu do autocarro e foi-se arrastando. Curiosamente apercebeu-se de que simplesmente não queria saber, não fazia sentido. Sorriu e pensou que de facto o silêncio da expectativa é bem melhor. Foi para casa. E nunca mais isso a perturbou...

(...)

Acabou o cigarro, sentia-se bem melhor. A luz continuava incessante.
Pensou nele, desejou que aquelas palavras envoltas no ritmo do Homem dos solos inconfundíveis tivessem sido escritas a pensar em si, mas o mais certo era esse pensamento não ter o menor fundamento. Não ficou triste, sabe que tudo na vida é uma construção. Não gostava da nudez óbvia, mas sim da sugestão do ornamento desconstruído. Não ficou triste, sabe que só aos poucos chegará a ele, porque não, ela não o queria só por uma noite. Passo a passo determinaria o seu dia e com ele uma vida e aquele futuro em que dançaria com o moreno de olhos grandes aquela dança que de tão envolvente reflectiria a construção do que agora é o silêncio tímido dos olhares de quem não sabe dançar!
Fechou a janela. Vestiu aquele vestido. Ai como gostava que ele a visse assim, com aquele vestido num adorno que sugeria a sua nudez, elegante, discreto e sublime.
Sorriu e ao som daquelas ritmos latinos dançou no seu movimento de ancas que a embalavam naquela envolvencia. Dançou solos de dança...dançou!

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